Encontro apresentou em primeira mão resultados com espécies nativas e alerta para novo risco com implantação de mineração no rio Santo Antônio.

Apenas 0,8% da vegetação do rio Doce foi restaurada até agora.  “Uma quantidade insignificante perto da proporção do impacto”, afirma o pesquisador Fernando Goulart, um dos membros do projeto de pesquisa que monitorou a bacia do rio Doce após o rompimento da barragem de Fundão. De 2016 a 2023, cientistas da UFMG, UFES, Unimontes e Embrapa percorreram as áreas atingidas de Mariana até a costa do Espírito Santo para identificar a biodiversidade e propor métodos de restauração ecológica

Mais de um milhão de pessoas foram afetadas pelo rompimento da barragem. Pelo menos 300 mil tiveram o acesso à água potável prejudicado e o aumento da área impactada continua até os dias de hoje. Mais de 600 km de rio foram afetados e há indícios de que o lençol freático da porção estuarina está contaminado. Na porção marinha, o impacto passa de 300km, de Marataízes (ES) até Abrolhos (BA). 

“A cada evento de chuvas e cheias, ou de frentes frias no oceano, há uma remobilização desses rejeitos e aumento da contaminação. Há piora na qualidade da água e aumento na mortalidade de peixes a cada ano, como se estivesse rompendo novamente uma barragem.”, explica Goulart. O impacto chegou a áreas de extrema importância para a conservação da biodiversidade de diversas regiões do Brasil, prioritárias para a conservação de mamíferos, peixes, plantas raras, répteis e anfíbios. Portanto, restaurar a bacia do rio Doce é beneficiar a biodiversidade continental, afirmam os pesquisadores.

Percorrendo a bacia, de Mariana ao mar

O projeto realizou um levantamento das árvores e das sementes contidas no solo no entorno do rio Doce, nas áreas atingidas pelo minério e nas áreas ainda preservadas. Os pesquisadores constataram uma alta diversidade de espécies que servem de referência para restaurar as áreas degradadas. O rio Doce tem um longo histórico de perturbação. Conhecer essas espécies nos dá noção da biodiversidade que foi impactada.”, afirma Yule Ferreira, professora da Unimontes e uma das coordenadoras do projeto. 

Figura 1: Profª. Yule Ferreira, da Unimontes, coordenou pesquisas em áreas referência e impactadas na bacia mineira do Rio Doce. Foto: Anderson Rodrigues/Leeb ICB-UFMG

Para Henrique Machado, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que coordenou as pesquisas no estado capixaba, uma das principais contribuições do estudo é demonstrar que projetos de restauração padronizados são um grande equívoco. “Há muita heterogeneidade entre as espécies na bacia do Doce, pensar numa única lista de espécies para restauração é um erro”, explica.

Figura 2: Profº Henrique Machado, da UFES, coordenou pesquisas de solo e flora na bacia capixaba do Rio Doce. Foto: Anderson Rodrigues/Leeb ICB-UFMG

Os sedimentos de rejeito encontrados nas margens do rio Doce vão de centímetros até mais de dois metros em algumas áreas. O volume impacta diretamente o restabelecimento da vegetação, mas retirar os sedimentos da barragem não é a melhor solução, afirma João Herbert Moreira, pesquisador da Embrapa Milho e Sorgo. “É preciso fazer intervenções para garantir que a restauração seja bem sucedida, mas o dano causado no processo de retirada seguramente seria pior. A inserção de tratores e caminhões, a raspagem e, posteriormente, o depósito desse material: em que lugar? uma nova barragem? O custo benefício seria muito questionável.”, explica.

Como os ecossistemas do rio Doce estão se adaptando?

Uma das etapas do projeto buscou identificar a estratégia ecológica de cada espécie: como elas se adaptaram às condições de degradação. Conduzido pelo pesquisador Daniel Negreiros, o estudo utilizou a ferramenta CSR, uma forma de caracterização amplamente utilizada no mundo que indica qual a estratégia de sobrevivência de cada espécie. 

“Competir com plantas vizinhas; tolerar falta de luz, de nutrientes no solo; secas prolongadas, deposição de poluentes, ou ainda, se especializar em gerar muitos descendentes, mas em contrapartida, ter um ciclo de vida muito curto. Cada um desses aspectos é apontado em um dos vértices do esquema triangular CSR.”, explicou o pesquisador. 

Os resultados preliminares indicam que nas áreas impactadas pela deposição do rejeito, as espécies têm se mostrado extremamente competitivas e com crescimento acelerado. É uma estratégia da planta para sobreviver à mudança do solo. Ela cresce pra cima, pra buscar luz ou espalhar mais descendentes.”, explica Negreiros.

Figura 3:  Daniel Negreiros apresenta o modelo CSR. Foto: Anderson Rodrigues/Leeb ICB-UFMG

Outro estudo que também avaliou a adaptação de espécies ao solo com minério foi o da mestranda Bárbara Dias, do Laboratório de Ecologia Evolutiva da UFMG. Dias estudou as espécies Deguelia costata, mais conhecida como Embira de carrapato, e Peltophorum dubium, ou Canafístula, nativas da região, identificando os efeitos do rejeito no desenvolvimento das plantas. Os resultados ainda estão sendo revisados, mas indicam que as espécies se adaptaram às condições do solo e são potenciais para restauração do ecossistema.

Estudando a microbiota do solo, a pesquisadora Maria Luiza de Moura analisou a contribuição de fungos na adaptação da Mutamba, espécie de nome científico Guazuma ulmifolia, comum nas matas ciliares do rio Doce. “Nos solos com rejeito de minério, as plantas têm dificuldade para obter nutrientes e até mesmo realizar fotossíntese. Mas quando suas raízes se associam a fungos, as chamadas micorrizas, a planta se beneficia dessa troca, obtendo do solo os nutrientes em falta.”, explicou Moura.  

Transferindo partes desses fungos (os inóculos) de uma planta para outra é possível torná-las mais tolerantes ao estresse químico e hídrico do solo. Os experimentos em laboratório com a Mutamba tiveram resultados positivos e indicaram como os inóculos de micorrizas podem ser utilizados nos projetos de restauração para aumentar a capacidade de resistência das plantas. 

Figura 4: Fungos micorrízicos. Mutamba, Guazuma ulmifolia. Foto de Valter Jacinto/BioDiversity4all

Cientistas lançam documento com propostas

Um dos produtos a ser lançado pelo projeto é um documento com propostas e orientações para auxiliar gestores na aplicação do conhecimento científico para o rio Doce. “Atualmente as políticas públicas que orientam restauração ecológica não são específicas quanto a definição do que é referência. Comumente são utilizadas poucas espécies resultando em ecossistemas simplificados, com pouca biodiversidade, que vão gerar  menos serviços ecossistêmicos.”, explica Tiago Shizen.

Uma das principais mensagens do documento destaca a heterogeneidade dos ecossistemas do rio Doce e a importância de se considerar a maior diversidade possível de espécies para atender às diferenças ao longo da bacia. O policy brief também alerta para os riscos ao rio Santo Antônio, um dos principais afluentes do rio Doce. Fonte de vida aquática, de fauna e flora para repovoar o Doce, o Santo Antônio está sob ameaça com a implantação de um grande complexo minerário em sua bacia, que pode pôr em risco um dos principais ecossistemas de referência e expor à degradação novamente o rio Doce.

O documento também lembra que estamos nos aproximando de uma década do rompimento da barragem de Fundão e ainda há muitas ações para a restauração a serem feitas. “A definição dos ecossistemas de referência é um passo inicial, mas mais pesquisas precisam ser feitas e mais ações tomadas. Esperamos que as políticas públicas sejam realmente aplicadas, e que considerem o conhecimento científico já produzido”, enfatizou o coordenador do projeto, Geraldo W. Fernandes.

Confira um resumo do workshop no vídeo abaixo:

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