O curioso sistema de barganhas entre espécies na natureza

Autores: Lara Ribeiro Maia, Victor Lucas Duarte, Giovanna Melo Bruzzi Corrêa, Isadora Rodrigues Carvalho, Beatriz Silva Pecanha, Fernanda Tupini das Dores. Com colaboração de Raíra Saloméa.

Todos os indivíduos desse planeta interagem constantemente entre si, seja para obter recursos ou abrigo, seja para se defenderem. E da mesma forma que os humanos desenvolvem estratégias para viver em sociedade, animais e plantas também trocam serviços, favores e pagamentos para sobreviver.

O estudo das interações ecológicas é o ramo da Ecologia que busca compreender o que são essas redes complexas de relações e qual a importância delas para o ecossistema. O mutualismo é um desses tipos de interação, que envolve dois ou mais indivíduos de espécies diferentes e geralmente resulta em algum benefício para os envolvidos. Essa relação é bastante estudada e conhecida, como o caso da polinização, extremamente importante para a manutenção da biodiversidade e do ambiente natural.

Mas existem diversos tipos de interações que ocorrem muito perto de nós, nos locais em que vivemos, e que são desconhecidos pela grande maioria das pessoas. O bioma Cerrado é o cenário perfeito para observá-las. Vejamos o caso das plantas portadoras de nectários extraflorais e das formigas que se alimentam de néctar.

Nectários extraflorais com gotas de néctar no pecíolo de uma folha de cerejeira selvagem (Prunus avium). Imagem de uso livre.
Nectários extraflorais com gotas de néctar no pecíolo de uma folha de cerejeira selvagem (Prunus avium). Imagem de uso livre.

O curioso comércio de alimentos e serviços

Que as flores produzem néctar isso você já deve saber. Mas existem algumas plantas, extremamente comuns aqui no sul dos trópicos, que secretam néctar por outras partes além da flor, em glândulas espalhadas na superfície de folhas e pecíolos (veja na foto). O néctar é um alimento rico em carboidratos, muito importante na alimentação de insetos, como as formigas. Em troca do néctar fácil e abundante dessas plantas, as formigas oferecem o serviço de patrulha e defesa, vigiando agressivamente a sua fornecedora de alimentos para afastar animais predadores e reduzir danos nas partes que produzem o néctar.

Os nectários extras dessas plantas também são uma estratégia para redirecionar a atenção das formigas, as deixando longe das flores. Com as flores livres de formigas, beija-flores, abelhas, borboletas e outros insetos podem se aproximar e realizar o serviço de polinização.

Mas não são só as formigas que trocam serviços por néctar extra. Vespas, moscas e aranhas também utilizam dessa mesma forma de interação com as plantas, conhecida como mutualismo defensivo, para conseguir alimentos e sobreviver no competitivo “comércio de bens e serviços” da natureza.

E como bons trabalhadores, as espécies também cooperam entre si para melhorar a vida. No caso das formigas, por exemplo, a vigilância das plantas com néctar extra pode se tornar ainda mais intensa com a ajuda de outro indivíduo nessa rede: as cigarrinhas. Também chamadas de Guayaquila xiphia (nome científico) esse inseto produz um fluido açucarado muito similar ao néctar. Por dar essa “força” para as formigas, oferecendo mais alimento, as cigarrinhas podem dividir espaço, se alimentar de pequenas partes da própria planta, sem prejudica-la, e ainda ficam protegidas contra possíveis predadores, devido a vigilância intensa das formigas.

Ectatomma tuberculatum na lâmina de uma folha, com nectários extraflorais indicados pelas setas vermelhas. Créditos: Cássio Pereira.

Mudanças no clima alteram a oferta e demanda

A variação climática ao longo do ano, com períodos de secas e chuvas, afeta os participantes dessa interação. Normalmente, em épocas de chuva, a abundância de insetos aumenta, além do surgimento de novas folhas, com maior disponibilidade de recursos para as formigas. Já em período de secas, o contrário ocorre. Apesar dessas variações, essa interação é extremamente adaptada evolutivamente e permanece acontecendo em ambientes naturais, com diferentes intensidades ao longo do ano.

Em ambientes extremos como o Cerrado, com queimadas constantes, há grandes alterações na região, onde as espécies locais passam por um processo de regeneração em decorrência do fogo não visto em muitos outros biomas. No entanto, as alterações drásticas como as causadas pelas mudanças climáticas, poluição, introdução de espécies exóticas, e exploração de recursos em excesso prejudicam a capacidade regenerativa e podem ocasionar um efeito cascata nessas redes de interação, atingindo dezenas ou centenas de espécies, o que pode alterar o funcionamento de todo o ecossistema.

Bem debaixo dos nossos olhos, animais e plantas se conectam por uma rede de serviços e barganhas que mais parece um desenho animado da Disney ou Pixar. São indivíduos com diferentes funções, formando um complexo sistema que sustenta o ambiente em que vivemos. A interação entre plantas e animais é mais comum do que imaginamos. O que só aumenta a urgência em reduzir os efeitos das ações humanas no meio ambiente e promover a preservação da biodiversidade. Manter o funcionamento da complexa teia de relações da natureza faz parte do compromisso de respeitar a vida sobre a Terra e mantê-la em operação para as próximas gerações.

Referências:

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  • Pereira C.C, Fernandes GW, Cornelissen T. (2022). A double defensive mutualism? A case between plants, extrafloral nectaries, and trophobionts. Alpine Entomology 6: 129-131.
  • Ribas, C., Oliveira, P., Sobrinho, T., Schoereder, J., & Madureira, M. (2010). The arboreal ant community visiting extrafloral nectaries in the Neotropical cerrado savanna. Terrestrial Arthropod Reviews 3: 3-27.
  • Vieira, F., Bluthgen, N., Viana-Junior, A. B., Guerra, T. J., Spirito, L. D., Neves, F. S. (2018). Resilience to fire and climate seasonality drive the temporal dynamics of ant-plant interactions in a fire-prone ecosystem. Ecological Indicators 93: 247–255.‌

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