Estudo pioneiro decifra a diversidade em diferentes habitats da Canga, ambiente raro que abriga espécies ameaçadas de extinção
Um ambiente com condições extremas de temperatura, solos rasos e pobres em nutrientes e com elevada concentração de ferro. Parece hostil, mas abriga muitas espécies raras e endêmicas que desenvolveram inúmeras adaptações para sobreviver aos rigores impostos pelo solo e clima. Com plantas de pequeno porte que mais parecem bonsais, esse ecossistema possui uma elevada capacidade de retenção de água entre os poros e canais nas rochas, de onde surgem nascentes que abastecem grandes cidades, como Belo Horizonte.
Essas são algumas das características únicas da canga, ecossistema encontrado particularmente na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, e na Serra dos Carajás, Pará. Nesse ambiente são encontradas as principais áreas de exploração de minério de ferro do país.
O estudo inédito, desenvolvido no Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, através de parceria com a AngloAmerican, determinou os ecossistemas modelo que servem de referência para três dos principais tipos de habitats que existem na canga: a canga nodular e a couraçada, as lagoas temporárias e o candeal. A publicação saiu hoje como capa de um importante revista internacional, Journal of Mountain Science, que publica pesquisas desenvolvidas em áreas de montanhas ao redor do mundo, sobretudo sobre mudanças climáticas.
Áreas testemunhas para a restauração
Os pesquisadores avaliaram as espécies de plantas que existem nesses três habitats e a relação delas com os solos, revelando as singularidades existentes em cada ambiente e as espécies que caracterizam cada um desses habitats. Ao entender quais espécies são prevalentes nos diferentes tipos de habitat, o estudo dá o primeiro passo na construção de modelos para a restauração ecológica e, assim, mitigar os efeitos da fragmentação desse ambiente raro e de extrema relevância para a conservação da biodiversidade.
Os resultados permitiram avaliar ainda a estreita e frágil relação solo/planta de forma integrada. Isso significa entender os tipos de estratégias que cada espécie usa nos diferentes habitats para sobreviver. Com esses dados é possível identificar quais espécies são mais adaptadas a cada característica do solo ou habitat e traçar modelos de restauração que possam ter maior sucesso. A publicação apresenta ainda um banco de dados que destaca as espécies que mais contribuem para a organização e construção das comunidades neste ecossistema extremo e complexo.
Espécies endêmicas ameaçadas de extinção
A pesquisa foi realizada na porção sul da Serra do Espinhaço em Minas Gerais, nos municípios de Catas Altas, Morro do Pilar e Conceição do Mato Dentro. Cerca de 9 mil metros quadrados de área de canga foram mapeados para realização do estudo.
Em todos os diferentes habitats avaliados, foi identificada uma elevada diversidade de espécies de plantas, muitas delas endêmicas (que só ocorrem naquele habitat). Como a Lychnophora pinaster, também conhecida como arnica do cerrado ou pau de candeia. Também foram descritas espécies que estão ameaçadas de extinção, como a Vellozia subalata e Myrsine villosissima. Para os pesquisadores, isso tem um amplo significado aplicado, pois indica a necessidade de proteção de múltiplos ambientes na conservação, bem como estudos de propagação destas espécies.
Relevância e ineditismo do estudo
Presente em áreas com alta relevância econômica, a canga tem sofrido crescente pressão da expansão imobiliária e da mineração. A supressão de habitats e a ocupação desordenada de áreas nativas representam fortes estressores que podem conduzir as espécies raras à extinção e ainda causar desequilíbrio no funcionamento do ecossistema.
Além disso, essas pressões têm sido a causa principal da invasão por espécies exóticas, que aumentam as chances de extinção e perda de propriedades do ecossistema que resultam na produção de água. Por esse motivo, os cientistas explicam que é urgente definir ambientes modelo e protegê-los para servirem de base a projetos de conservação e restauração das áreas de canga degradadas.
Os resultados trazidos pelo estudo confirmaram que o campo rupestre é composto por um grande mosaico de tipos de vegetação e habitats moldados por condições locais intrínsecas, sendo essencial que projetos de restauração ecológica contemplem esse conhecimento.
As propostas de restauração devem respeitar as características distintas de cada habitat para obter ganhos em biodiversidade. Não considerar essas especificidades pode levar à homogeneização dos ecossistemas, resultar em mais perdas de biodiversidade e de serviços ecossistêmicos e favorecer o estabelecimento de espécies invasoras.
Para os pesquisadores, as atuais políticas ambientais precisam considerar os avanços da ciência produzidos no ecossistema canga e alterar urgentemente procedimentos e orientações gerais ou fornecerão base legal para práticas enganosas de restauração e perda de biodiversidade no ecossistema brasileiro que é considerado o mais ameaçado.
“O estudo claramente mostra que estamos no caminho errado na restauração de ambientes de canga. Se não utilizamos espécies nativas e não restauramos com foco nos diferentes ‘habitats espelho’, estamos apenas brincando de restaurar. Esse trabalho inédito mostra que precisamos melhor informar o tomador de decisão sobre as melhores estratégias de restauração em áreas impactadas”, explica Geraldo Fernandes, autor principal do artigo e coordenador da pesquisa.
Contribuição para os objetivos internacionais de sustentabilidade
A pesquisa desenvolvida está alinhada às iniciativas globais em biodiversidade, como os esforços da Década da Restauração (2020-2030), na qual os países se propuseram a restaurar e diminuir as emissões de carbono; e aos Objetivos de Desenvolvimentos Sustentáveis da ONU, relacionados à garantia da saúde e bem-estar (ODS 3), acesso à água potável e saneamento (ODS 6), mitigação das alterações climáticas globais (ODS 13) e preservação da vida terrestre (ODS 15). Saiba mais no site