Pesquisa refaz o caminho da lama e mapeia matas ciliares mais preservadas de Minas até o mar
Diversas iniciativas de restauração da bacia do rio Doce estão sendo desenvolvidas e implementadas desde o rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, em 2015, na cidade de Mariana (MG). Muitas empresas e institutos de pesquisa de todo país se dedicaram a desvendar as melhores práticas para recuperar os solos, a qualidade da água e restaurar a fauna e flora impactadas, a fim de retornar para as comunidades atingidas e toda sociedade um ambiente recuperado. Um importante passo para isso foi dado esta semana, com a publicação de um mapeamento inédito que fornece conhecimento para restaurar a vegetação e promover a sociobiodiversidade na bacia do rio Doce.
O mapeamento das diferentes florestas e espécies de plantas que existem de Mariana até a foz do rio Doce é requisito crucial para a restauração da vegetação. Desde 2017, dois anos após o rompimento da barragem, cientistas liderados pela UFMG, Unimontes, UFES e UFLA trabalham em um raio X das espécies nativas da região. Após sete anos de pesquisa, a partir da união de dados de dois projetos de pesquisa, o Biochronos e Restauração do Rio Doce, o trabalho foi divulgado esta manhã, em um artigo que lista as espécies nativas mais frequentes presentes nas margens do rio Doce.
A grande extensão da área estudada, que compreende mais de 663 km de curso do rio, desde o epicentro do rompimento da barragem até o mar; bem como a diversidade significativa de espécies encontradas, os desafios impostos pela pandemia e as restrições de recursos fizeram com que o processo de mapeamento demandasse um tempo considerável para ser concluído. No entanto, a espera foi recompensada. Os resultados revelaram o que os pesquisadores já desconfiavam: existem múltiplas florestas ao longo do rio Doce.
“Desde que partimos de Mariana, seguindo o rio, encontramos muitos tipos de florestas, cada uma com suas singularidades e com suas espécies únicas. Mostramos que não existe apenas um tipo de floresta ao longo do rio, mas que são vários tipos. Esse resultado tem um amplo significado aplicado, pois indica que os projetos de restauração precisam reproduzir estes múltiplos ambientes, com um grupo robusto de espécies.”, afirma Letícia Ramos, do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, primeira autora do artigo.
As múltiplas florestas ao longo do rio
As matas que margeiam o rio Doce, de Minas Gerais até o mar do Espírito Santo, regulam os fluxos de água e garantem a segurança hídrica para milhões de pessoas. O estudo revelou que elas se diferenciam em até 99% de um ponto a outro. Isso significa que a cada setor do rio, que percorre 11 municípios, foram encontradas matas completamente diferentes umas das outras, com apenas 1% das espécies compartilhadas. Uma elevada diversidade de espécies adultas ou ainda em mudas foi encontrada exclusivamente em apenas um local.
A pesquisa avaliou a qualidade do solo, da composição da vegetação e da paisagem, fornecendo uma síntese abrangente sobre as matas ao longo do rio. Um verdadeiro raio X que ajuda a compreender como restaurar não apenas o rio Doce, mas toda a bacia, e um alerta para a necessidade de proteção e conservação desses múltiplos ambientes.
“Finalmente temos ecossistemas de referência definidos que servem de base para projetos de restauração. Os resultados desta pesquisa podem reduzir significativamente o risco de plantarmos um tipo único de floresta do início ao fim do rio e, assim, mitigar parcialmente os impactos causados pelo rompimento da barragem de mineração”, comenta Geraldo Fernandes, pesquisador da UFMG e coordenador da pesquisa.
O segredo está nos solos
O solo é um dos principais fatores que orquestra quais espécies podem viver aqui ou ali, quais espécies conseguem ocorrer em todos lugares, o quanto crescem e se conseguirão se reproduzir. A diversidade entre os setores do rio Doce mostrou a enorme relevância dos solos em filtrar espécies que sobrevivem em circunstâncias opostas. Enquanto um conjunto de espécies são mais adaptadas aos solos mais férteis, outras são mais adaptadas a solos mais pobres.
Esse gradiente de fertilidade do solo, conhecido pelos cientistas, destaca a complexidade dos projetos de restauração em toda a bacia do rio Doce. Aliado ao mapeamento da vegetação, esse conhecimento dos solos é fundamental para elaborar estratégias de restauração que possam de fato respeitar as características particulares de cada lugar, sem o que os cientistas chamam de “remendos no tecido ambiental”.
Importância mundial da Mata Atlântica
Os resultados do estudo impactam em algo ainda mais amplo do que a recuperação da bacia do rio Doce. A fragmentação da Mata Atlântica é um grande problema ambiental na região. Suas áreas florestais preservadas são hoje ilhas isoladas em meio a áreas degradadas por diferentes usos do solo. Esforços para restaurar e retomar a conectividade dos ambientes preservados são fundamentais para servir como corredores ecológicos, que permitam a movimentação de espécies e reduzam o risco de extinção.
Mesmo fragmentada, a rica biodiversidade desse bioma resiste, mas requer esforços e políticas contínuas de conservação e restauração para salvaguardar os seus ativos ecológicos únicos. Os esforços deste estudo estão alinhados com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 3, para a saúde e bem-estar; 6, para acesso a água potável e saneamento; 13, para mitigar as alterações climáticas globais; 14, para preservar a vida na água; e 15, para preservar a vida na terra.
A pesquisa foi financiada pela FAPEMIG/Renova e apoiada pelo Centro de Conhecimento em Biodiversidade (INCT/CNPq).